O fenómeno dos “falsos recibos verdes” tem sido apontado há longos anos como uma das maiores fontes de precariedade no mercado de trabalho em Portugal.
A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) procedeu recentemente à notificação de 9699 entidades contratantes para regularização do vínculo laboral de 17701 prestadores de serviços economicamente dependentes, como tal sendo considerados os trabalhadores independentes que prestam 80% ou mais da sua atividade a uma única entidade.
⚠️ Esta regularização deverá ser realizada até dia 16 de fevereiro de 2024.
Dadas as dúvidas sobre o tema, e sobre os procedimentos a adotar, resolvemos contactar o advogado Dr. Jorge Cunha, para que nos desse o seu parecer.
Nota sobre as notificações para verificação da regularidade do vínculo laboral promovidas pela ACT
"A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) procedeu recentemente à notificação de 9699 entidades contratantes para regularização do vínculo laboral de 17701 prestadores de serviços economicamente dependentes, como tal sendo considerados os trabalhadores independentes que prestam 80% ou mais da sua actividade a uma única entidade.
As empresas notificadas têm até ao dia 16 de Fevereiro para efectuar a regularização dos respectivos vínculos laborais, de contrato de prestação de serviços para contrato de trabalho.
Após a data de 16 de Fevereiro, a ACT procederá a nova verificação da regularidade dos vínculos e manutenção dos postos de trabalho, dando início à correspondente acção inspectiva para garantir o cumprimento da legislação em vigor, caso a situação não tenha sido regularizada no prazo indicado.
O fenómeno dos “falsos recibos verdes” (relações de trabalho dissimuladas sob a veste de contratos de prestação de serviços) tem sido apontado há longos anos como uma das maiores fontes de precariedade no mercado de trabalho em Portugal.
A natureza precária do vínculo e o menor custo para a empresa, por regra associados às relações de prestação de serviços (prazo do contrato livremente estipulado pelas partes e, na sua ausência, a relação pode cessar a qualquer momento; inexistência do direito a férias pagas, respectivo subsídio de férias e subsídio de Natal; não sujeição às regras relativas à parentalidade, formação profissional, tempos de trabalho, retribuição, acidentes e doenças profissionais, etc.; bem como o menor valor das contribuições para a Segurança Social), levam a que muitas relações contratuais que configuram verdadeiras relações laborais, e que deveriam estar abrangidas pelo Código do Trabalho, na verdade, se encontrem formalmente dissimuladas sob a veste de contratos de prestação de serviços.
Reconhecendo esta realidade, o pacote legislativo “Agenda para o Trabalho Digno” reforçou os meios, competências e procedimentos ao dispor da ACT, de modo a tornar mais eficaz o combate ao trabalho precário nas suas várias dimensões, incluindo os “falsos recibos verdes”.
A ACT pode agora, nomeadamente, efectuar cruzamentos de dados com a Segurança Social, acedendo às comunicações efectuadas pelas entidades contratantes quanto à natureza e tipo do vínculo existente com os seus colaboradores, bem como quanto ao montante e regularidade das retribuições pagas.
Como estratégia de detecção de situações que possam configurar casos de “falsos recibos verdes”, a ACT definiu como indicador da eventual existência de uma relação de trabalho a circunstância de um trabalhador independente possuir um volume de facturação de mais de 80% para a mesma entidade, por entender que a dependência económica numa só entidade é um indicador da existência de uma relação de trabalho por conta de outrem.
As notificações para verificação da regularidade do vínculo laboral surgem como resultado da aplicação automatizada e generalizada deste critério da dependência económica às entidades contratantes e trabalhadores independentes inscritos na base de dados da Segurança Social.
Todavia, apesar da ACT considerar a dependência económica um indicador de relação laboral, aquela, na verdade, não constitui um elemento caracterizador do contrato de trabalho para efeitos do artigo 12.º do Código do Trabalho, pelo que a sua verificação não permite, por si só, presumir a existência de um contrato de trabalho.
Por outro lado, a circunstância de um trabalhador independente prestar 80% ou mais da sua actividade a uma única entidade não é sequer um indicador seguro de dependência económica face a entidade, pois pode perfeitamente dar-se o caso do prestador em causa possuir outras fontes de rendimentos.
As notificações não se fundamentam em qualquer outro indício de relação laboral, para além do volume de facturação superior a 80% para a mesma entidade, não tendo sido, na sua elaboração, consideradas ainda as concretas características da relação contratual em causa, nem verificados os indícios de contrato de trabalho elencados no artigo 12.º do Código do Trabalho.
Deste modo, nas relações contratuais alvo de notificação poderá não existir qualquer dissimulação ou fraude.
Estas notificações devem ser encaradas como um alerta por parte da ACT, no sentido de informar as entidades contratantes da detecção preliminar de um indicador de existência de relação de trabalho por conta de outrem, referente à relação com o prestador de serviços em causa, e visam conferir às entidades contratantes a oportunidade de verificarem se efectivamente a relação contratual com o seu colaborador se trata de uma verdadeira relação de prestação de serviços, ou se, pelo contrário, se trata de uma relação de natureza laboral, como o indicador da dependência económica parece sugerir, caso em que devem proceder à sua regularização para evitar uma acção inspectiva.
Uma vez que, em rigor, não existe ainda uma acção inspectiva em curso, as notificações não admitem resposta ou qualquer tomada de posição formal perante a ACT.
O que as entidades contratantes devem fazer, perante estas notificações, é proceder a uma análise criteriosa da relação contratual em questão, tendo nomeadamente em consideração os elementos previstos no artigo 12.º do Código do Trabalho que permitem a formação da presunção legal da existência de um contrato de trabalho:
- a actividade é realizada em local pertencente à entidade contratante ou por si determinado;
- os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à entidade contratante;
- o prestador da actividade observa horas de início e de termo da prestação, determinadas pela entidade contratante;
- é paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma;
- o prestador de actividade desempenha funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da entidade contratante.
A convergência simultânea de alguns destes elementos não cumulativos na relação contratual conduzirá à presunção da existência de um contrato de trabalho. Esta presunção admite prova em contrário, todavia esta ficará a cargo exclusivo da entidade contratante, cabendo-lhe o ónus de demonstrar que a situação em causa não constitui um contrato de trabalho, mas sim um contrato de prestação de serviços.
A ponderação sobre a natureza da relação contratual que foi alvo de notificação poderá envolver um grau de complexidade jurídica elevado, pelo que deverá ser efectuada com o devido apoio técnico, por parte de um Advogado ou de um jurista especialmente qualificado.
Efectuada a referida ponderação, caso a entidade contratante verifique que a relação contratual identificada pela ACT efectivamente possui características típicas de uma relação laboral, deverá regularizar voluntariamente o vínculo com o trabalhador, informando-o da alteração do contrato de prestação de serviços para contrato de trabalho, elaborando o registo pessoal do trabalhador e comunicando ao Instituto da Segurança Social a alteração da qualificação do trabalhador.
Caso não ocorra a regularização do vínculo contratual, a ACT poderá promover, então sim, uma acção inspectiva direccionada à específica relação contratual em causa. Será no âmbito desta acção inspectiva que a ACT procederá a uma análise pormenorizada da relação contratual, verificando os elementos previstos no artigo 12.º do Código do Trabalho que permitem presumir a existência de um contrato de trabalho, e assim apurando se o indicador de facturação de mais de 80% para a mesma entidade efectivamente detectou a existência de uma relação laboral dissimulada, ou se, como por certo irá ocorrer em vários casos, apesar deste indicador, na verdade não existe uma relação de trabalho entre a entidade contratante e o trabalhador independente, mas sim uma verdadeira relação de prestação de serviços.
Se, no âmbito da acção inspectiva, da análise das especificidades da relação contratual se evidenciarem mais características típicas do contrato de trabalho, em reforço do indicador de volume de facturação para a mesma entidade, a ACT poderá presumir a existência de uma relação de trabalho por conta de outrem, tal como previsto no artigo 12.º do Código do Trabalho. Neste caso, a lei prevê que a ACT deve lavrar um auto de notícia e notificar a entidade contratante para, no prazo de 10 dias, regularizar a situação ou pronunciar-se quanto aos factos apurados.
Caso a entidade contratante não concorde com a conclusão a que a ACT chegou no âmbito da acção inspectiva efectuada, no sentido da relação contratual configurar um relação de contrato de trabalho, deverá apresentar os seus argumentos em sentido contrário quando for chamada a pronunciar-se. Já se a entidade contratante optar por reconhecer a existência da relação laboral, poderá ainda regularizar voluntariamente a situação com o trabalhador em causa nesta fase, caso em que o procedimento em curso será arquivado.
Decorrido o prazo concedido em sede de acção inspectiva, sem que o vínculo com o trabalhador se mostre devidamente regularizado, a lei prevê que a ACT deverá remeter uma participação dos factos para os serviços do Ministério Público da área de residência do trabalhador, acompanhada de todos os elementos de prova recolhidos, para fins de instauração contra a entidade contratante de uma acção judicial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho. Neste cenário, a discussão sobre a natureza da relação contratual passará para o âmbito judicial.
Ocorrendo o eventual reconhecimento, pelo Tribunal, da existência de contrato de trabalho, a sentença deverá fixar a data em que se iniciou a relação laboral. Esta data poderá assumir relevância para efeitos de eventual reposição das quantias devidas à Segurança Social e ao trabalhador, que não tenham sido pagas na altura devida, em virtude da errada qualificação da relação como uma relação de prestação de serviços.
Atente-se também que a prestação de actividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado, constitui contra-ordenação muito grave, imputável ao empregador. Pelo pagamento da respectiva coima, são solidariamente responsáveis o empregador, as sociedades que com este se encontrem em relações de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, bem como o gerente, administrador ou director.
Considerando as possíveis consequências para a entidade contratante advindas do eventual reconhecimento da existência de um contrato de trabalho que até então se encontrava dissimulado sob a veste de um contrato de prestação de serviços, as notificações para verificação da regularidade do vínculo laboral promovidas pela ACT não devem ser encaradas de ânimo leve por parte das entidades notificadas.
Se é verdade que o critério da dependência económica definido pela ACT não constitui um elemento caracterizador do contrato de trabalho, não permitindo, isoladamente, presumir a existência de uma relação laboral e de uma situação de dissimulação ou fraude, é também verdade que as entidades notificadas não deverão deixar de efectuar uma análise ponderada da concreta relação contratual em causa, tendo em devida consideração, nomeadamente, os elementos previstos no artigo 12.º do Código do Trabalho.
Caso a entidade notificada constate que a relação contratual identificada pela ACT possui as características típicas de uma relação laboral, deverá ponderar regularizar voluntariamente o vínculo com o trabalhador, de modo a evitar a acção inspectiva que se seguirá e as potenciais consequências da mesma decorrentes.
Jorge Salvador Cunha
Advogado
O presente texto tem carácter meramente informativo e não vinculativo. A sua disponibilização não pressupõe nem constitui uma relação entre Advogado e Cliente."